1. As razões deste artigo
Com cada vez mais insistência, e não já sem alguma dose de desespero, a revisão da Lei de Finanças Regionais tem sido apresentada aos Açorianos como uma necessidade imperiosa, uma suposta urgência política cujo fundamento é o estado das finanças públicas regionais, tão bem sintetizado na expressão governamental “o dinheiro não dá para as despesas!”
Nesse contexto, há um conjunto de apreciações que se têm feito em relação a essa lei, as quais, na minha opinião, encerram um engano e um perigo. Esse engano e esse perigo exigem, se não mesmo impõem, que se faça um debate informado, esclarecido e esclarecedor sobre uma matéria que é de importância vital para a Autonomia e para a vida dos Açorianos.
Na verdade, aquilo que está em causa é bem mais do que uma lei. É um pilar essencial da Autonomia Regional e um instrumento decisivo para que os Açorianos possam continuar a ter a possibilidade de, pelo menos em algumas matérias, tomar decisões, executar políticas e, assim se queira, ser diferentes do que se faz no País. São essas as razões que me levam a “lançar mão da pena para escrever estas mal-amanhadas linhas”, circunstância que significa, também, o cumprimento de um dever cívico que sobre mim, assim como sobre todos, julgo impender.
Esta é, no fundo, uma tentativa, a qual está, provavelmente, votada ao fracasso, de romper com um manto de inércia, de comodismo e de passividade cívica num assunto cujas implicações vão bem para além da política e dos partidos políticos.
São implicações que dizem respeito a algumas das condições, por sinal, imprescindíveis para a sustentabilidade futura dos Açores e da Autonomia, e para as condições de vida, presente e futura, dos Açorianos.
Por isso, para além do trabalho que os partidos políticos, e bem, desenvolvem sobre este assunto, parece-me francamente aconselhável, tendo em conta a importância daquilo que, segundo a minha perspetiva, está em causa, que, a começar pela Universidade dos Açores, mas também os órgãos de comunicação social, públicos ou privados, associações cívicas e, até, parceiros sociais e suas organizações representativas, pudessem aprofundar um pouco mais a análise e a reflexão, questionassem e refletissem, escrutinassem razões e contrapusessem argumentos, requisitos sem os quais, o esclarecimento e a participação cívicos, úteis e com sentido, não existem.
2. “Uma Comédia de Enganos”
A forma como a necessidade e a urgência da revisão da Lei de Finanças Regionais têm sido apresentadas, parece resumir-se a algumas ideias básicas: “é preciso rever a lei porque os meios que ela garante não são suficientes para cobrir as despesas do Orçamento Regional”; “é preciso rever a lei porque ela já não é revista há muito tempo”; “é preciso rever a lei para que ela seja mais amiga da Autonomia”.
Cada um desses pretensos argumentos encerra aquilo que, na minha opinião, constitui um engano grosseiro, com consequências que podem vir a revelar-se bastante graves para a nossa Autonomia.
Indo por partes: O primeiro argumento, o de que é preciso rever a lei porque os meios que ela garante já não dão para cobrir as despesas, parte de uma confusão que convém esclarecer.
Ao contrário do que se quer fazer crer, o critério e a medida da Lei de Finanças Regionais não é o de garantir os recursos financeiros para cobrir as despesas decididas pela Região. O seu objetivo é, como sempre foi, o de definir quais os recursos financeiros que, na relação com o Estado, a Região pode considerar como seus, e ser livre de administrá-los como entender, afetando-os às despesas que entende realizar e aos encargos que pretende assumir.
A diferença pode parecer menor, mas, na verdade, é determinante, como bem se perceberá no seguinte: se a Lei de Finanças Regionais tivesse por critério e medida a satisfação das despesas da Região, seria como se o rendimento de alguém fosse definido pelo montante das despesas que assume e não por aquilo que lhe é devido. Como qualquer família ou empresa açoriana bem sabe, a vida não é assim…
Em segundo lugar, esta visão da função, do critério e da medida da Lei de Finanças Regionais constitui, é importante dizê-lo, um inequívoco fator de degradação e descredibilização da Autonomia. A ambição parece já não ser, no caso, a “livre administração dos Açores pelos Açorianos.” A ambição da Autonomia parece já não ser a de termos liberdade de administrar aquilo que temos à nossa disposição. Resume-se, isso sim, a pedir, quiçá de chapéuzinho na mão, que nos paguem, ou que nos ajudem a pagar, aquilo que gastamos.
Acresce que a visão que está por detrás dessa afirmação, expõe completamente o flanco à crítica de que, assim, as regiões parecem não ter qualquer constrangimento para assumir despesas porque a função da Lei de Finanças Regionais seria sempre a de garantir que o Estado transfere os recursos necessários para cobrir essas despesas. Em suma, segundo essa perspetiva, a Autonomia resume-se a gastar. O Estado deve pagar.
Para além de outros, um dos graves problemas que essa posição acarreta é que, ao mesmo tempo que, de forma progressiva, a Região vai necessitando de mais e mais ajuda do Estado para pagar as despesas que faz e os encargos que assume, isso significa abrir a porta a que o mesmo Estado possa questionar o mérito ou o demérito das opções políticas que a Região toma na realização da despesa pública, invocando, precisamente, a legitimidade de ser quem paga ou de quem ajuda a pagar.
E essa ameaça não é assim tão distante ou inverosímil.
No final de 2013, o Representante da República para os Açores tomou a inédita e politicamente grave decisão de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto Legislativo Regional que aprovou o Orçamento da Região para 2014. Fê-lo, porque, nesse Orçamento, o Governo Regional havia proposto, e a Assembleia Legislativa decidido, com recurso às suas receitas próprias, contrariar os cortes nos salários da função pública que tinham sido impostos pelo Governo da República de então.
Quer a argumentação expendida nesse pedido de fiscalização, quer os argumentos que a Região usou para a sua defesa, quer, sobretudo, o teor do acórdão que o Tribunal Constitucional proferiu sobre o pedido do Representante da República, e que veio a dar razão aos Açores, deveriam ser, cuidadosa e atentamente, lidos e relidos pelos defensores dessa ideia.
Esses argumentos, bem como a lucidez de descortinar a peculiar, mas, infelizmente, não tão rara, conceção política em que se alicerçou o pedido do Representante da República, seriam uma grande ajuda para que se perceba que, no minuto seguinte ao Estado comparticipar as despesas da Região, o mesmo Estado questionará o teor das decisões que a Região toma ou tomou sobre as matérias em concreto que possam fundamentar esse pedido de ajuda.
Mas não só do ponto de vista autonomista, a ideia de querer que o Estado assuma parte dos encargos das decisões que a Região tomou ou toma, revela-se, no mínimo, particularmente frágil, para além de politicamente desastrada e desastrosa.
Se analisarmos o assunto na perspetiva daquilo que, efetivamente, a Região recebe ao abrigo da Lei de Finanças Regionais, e os termos em que recebe, claro se torna que essa lei não é má. Bem pelo contrário!
Nos termos da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, as receitas que as regiões autónomas recebem do Estado podem dividir-se em 3 grandes grupos: as receitas fiscais, as receitas resultantes de transferências do Estado ao abrigo da solidariedade nacional e as receitas, também resultantes de transferências do Estado, ao abrigo do fundo de coesão (este fundo de coesão nada tem a ver com os fundos europeus).
No caso das receitas fiscais, a Região recebe a totalidade, repito, a totalidade dos impostos diretos, como o IRS e o IRC, e a totalidade dos impostos indiretos, como o IVA, o Imposto de Selo, o Imposto sobre o Jogo, ou o Imposto sobre os produtos petrolíferos, gerados ou cobrados na Região, ou que com ela tenham alguma relação. Aliás, em bom rigor, no caso do IVA até recebe mais do que o imposto que é gerado ou cobrado na Região, uma vez que o valor base tem em conta o IVA gerado e cobrado em todo o País, sendo afeta à Região a percentagem correspondente à população dos Açores, e tendo em conta as taxas desse imposto aí aplicadas.
No caso das verbas que o Estado transfere para as regiões autónomas ao abrigo da solidariedade nacional, elas destinam-se a promover a eliminação das desigualdades resultantes da insularidade e da ultraperiferia. A determinação do montante que é transferido anualmente para as regiões autónomas é feito através de uma fórmula na qual, entre outros, são considerados dados como a população de cada região autónoma, o número de ilhas, a distância entre um ponto habitado de cada uma das regiões e a capital do distrito do continente português mais próxima ou os indicadores de esforço fiscal.
A esse propósito, não me parece ser pouca monta recordar que, na revisão de 2013, o Governo da República de então, presidido pelo Dr. Pedro Passos Coelho, para além de ter imposto um aumento de impostos nos Açores por via da redução do diferencial fiscal, também reduziu, no cálculo do valor da distribuição das transferências por cada região, o peso do ponderador n.º de ilhas e distância ao Continente, o que beneficiou a Madeira em detrimento dos Açores.
No caso das verbas que o Estado transfere paras as regiões autónomas ao abrigo do fundo de coesão, elas destinam-se a apoiar projetos de investimentos constantes dos planos de investimentos previstos nos planos anuais, tendo como objetivo a convergência económica com o restante território nacional e com a União Europeia. A determinação do montante anual transferido é feita com recurso a, entre outros elementos, o nível de convergência com o País, medido pelo indicador Produto Interno Bruto per capita de cada uma das regiões face ao País.
Para além destas, as regiões recebem ainda uma parte das receitas dos jogos sociais e, embora de natureza completamente diferente, a própria lei garante a possibilidade de se poder recorrer a empréstimos.
Dito isto, importa ter presente para esta reflexão que, em termos comparados, desde logo, com outras regiões europeias, na esmagadora maioria dos casos existe um relacionamento financeiro entre as regiões e os respetivos estados, sobretudo na componente fiscal, bem distinto daquilo que a Lei de Finanças regionais estabelece no nosso país. Aquilo que existe, são modelos nos quais, embora as regiões recebam uma parte mais ou menos significativa das receitas fiscais que nelas são geradas e cobradas, há sempre uma parte dessas receitas que reverte para o Estado a título de participação das regiões nas despesas que o Estado assume com a prestação das suas funções no território dessas regiões, nomeadamente, a Defesa, a Justiça, a Segurança Interna, para apenas citar algumas.
Ao determinar que as regiões autónomas recebem a totalidade das receitas dos impostos que nelas são cobrados, gerados ou que com elas têm uma qualquer relação, a atual Lei de Finanças das Regiões Autónomas vai bastante mais longe do que as suas congéneres a nível europeu. Por força dessa lei, as despesas que o Estado tem com as suas funções no território das regiões autónomas não são custeadas, nem pouco, nem muito, pelos impostos pagos por Açorianos ou por Madeirenses.
Julgo ser muito importante que se reconheça e assuma, sobretudo em tempos de vertigens de revisão, que, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista financeiro, esta solução constituiu o que podemos chamar de um tiro em cheio, logo à primeira, com isto querendo significar duas coisas: a primeira é que essa é uma solução extraordinariamente favorável às regiões autónomas portuguesas; e a segunda é que tudo deve ser feito para salvaguardar, preservar e defender essa abordagem segundo a qual, a totalidade das receitas fiscais geradas e cobradas na Região, são receitas regionais.
E tanto essa é uma solução extraordinariamente favorável às regiões autónomas que, com cada vez maior insistência, já se levantam vozes que questionam o mérito dessa solução.
3. “Eles andam aí!”
Em fevereiro de 2022, o Conselho de Finanças Públicas, publicava um documento intitulado “Administração Regional: Enquadramento Orçamental”, da autoria da sua Presidente, Professora Doutora Nazaré da Costa Cabral, e do vogal não executivo, Prof. Doutor Carlos Fonseca Marinheiro, no qual se considera que a solução das regiões serem detentoras da totalidade das receitas fiscais nelas cobradas constitui uma “contradição económica”, uma “solução inusual” e sem fundamento económico.
Por outro lado, o Prof. Doutor Jorge Pereira da Silva, autor citado nesse documento e que até conhece a realidade regional por ser assíduo e empenhado colaborador do gabinete do Representante da República para os Açores, considera essa solução um “anacronismo económico”, por consagrar que a totalidade das receitas fiscais geradas ou cobradas numa região autónoma são receita dela e que, portanto, as funções que o Estado desempenha nessas regiões não são, de todo, comparticipadas pelos impostos que nelas são cobrados.
Aliás, o Prof. Doutor Jorge Pereira da Silva, ilustra a sua crítica de uma forma bastante elucidativa: se, porventura, todo o país estivesse regionalizado e, relativamente a todas as regiões se adotasse a mesma solução, o Estado deixaria de ter receitas, porque todas as receitas de impostos seriam das regiões.
Talvez fosse desnecessário fazer esta ressalva, mas, à cautela, julgo importante deixar claro que o facto de eu reconhecer que a solução da Lei de Finanças Regionais é, nesse domínio, extraordinariamente favorável às regiões autónomas, não significa, nem no todo, nem em parte, que eu concorde com essas críticas que atrás refiro...
Mas se virmos a questão, já não nesse plano das soluções teóricas ou dos princípios, mas no plano concreto do montante que essa solução, quer a da totalidade das receitas fiscais ser da Região, quer a das transferências a título de solidariedade nacional, quer, ainda, a das transferências no âmbito da coesão nacional, tem garantido à Região, também por aí podemos avaliar do mérito da Lei de Finanças Regionais.
Entre 2021 e 2024, isto é, em quatro anos, as receitas que esta Lei de Finanças Regionais garantiu aos Açores, e apenas à Região Autónoma dos Açores, foram cerca de 4 mil e 300 milhões de euros, (mais especificamente 4.291 milhões), sendo 3.105 milhões de euros na componente das receitas fiscais, e 1.186 milhões de euros de transferências do Orçamento de Estado no âmbito da tal solidariedade nacional e do fundo de coesão.
Para termos uma ideia do que estamos a falar, esta Lei de Finanças das Regiões Autónomas garantiu, nesse período e por ano, os mesmos recursos financeiros aos Açores quanto aqueles que estes receberam da União Europeia entre 2014-2020, ao abrigo dos dois principais fundos estruturais, FEDER e FSE ao longo de sete anos. Ao abrigo da Lei de Finanças Regionais foram, por ano, 1073 milhões de euros. Da UE, em sete anos, ao abrigo daqueles dois fundos, os Açores receberam 1080 milhões de euros.
Por tudo aquilo que até aqui vem sendo dito, é que não me parece ser, nem verdadeira, nem razoável, a crítica segundo a qual esta Lei de Finanças Regionais trata mal os Açores do ponto de vista dos recursos financeiros que lhes garante e que lhes afeta.
Por isso, é necessário evitar o perigo ou o risco de “atirar fora a criança com a água do banho”, com isto querendo dizer que, a pretexto de alterar a Lei de Finanças Regionais para resolver os problemas financeiros da Região, poder conduzir-se os Açores a uma situação em que a Autonomia pode abrir brecha, ou a própria Lei de Finanças Regionais ficar fragilizada, sobretudo, nos aspetos que, como atrás já vimos, são extraordinariamente favoráveis à Região.
E talvez não seja despropositado nesta parte chamar a atenção para a circunstância, historicamente comprovável, de que, exceptuando os pedidos do Governo Regional em 2014, para que a Lei de Finanças Regionais fosse alterada no sentido de retomar o diferencial fiscal de 30% que havia sido anulado, as alterações dessa lei foram sempre feitas por iniciativa e no interesse dos Governos da República, e não no sentido de reforçar a posição das regiões autónomas…
A Lei de Finanças Regionais, desde a sua versão inicial, com notável acerto e mérito, consagra soluções extraordinariamente favoráveis para as regiões autónomas, desde logo, do ponto de vista comparado, e querer alterá-la sem a devida ponderação, cuidado e reflexão pode trazer mais prejuízos do que melhorias.
E com isto, a ideia de que o simples decurso do tempo é fundamento e justificação bastante para uma revisão desta lei, revela-se, afinal, também um engano.
4. Errar é humano, mas persistir no erro é diabólico
Tenho visto referidas no espaço público, com particular insistência, duas ideias ou duas propostas de alteração da Lei de Finanças Regionais que considero terem, sob o manto de retórica com que as envolvem, um elevadíssimo potencial para causarem dano à Autonomia ou para fragilizarem, se não mesmo, destruírem, aspetos que reputo de bastante positivos, e até essenciais, na atual Lei.
A primeira é a de que o Estado deve assumir parte dos encargos que a Região tem com os setores da Saúde e da Educação.
Os motivos pelos quais considero que essa proposta é negativa são os seguintes:
Em primeiro lugar, ela constitui, na minha opinião, um ato de rendição, uma declaração de impotência e de incapacidade.
Em dois dos setores que são essenciais à nossa vida coletiva, setores nos quais a Autonomia Regional fez, e faz, mesmo que com falhas, a diferença para melhor, em setores que estão regionalizados desde, praticamente, os inícios da experiência do nosso modelo de autogoverno, hoje, quase 50 anos depois, com este tipo de posições, a Autonomia parece sucumbir ao peso do exercício das suas competências e render-se ao Estado por não conseguir satisfazer os encargos das suas decisões.
Os danos que a verbalização dessa proposta causa ao nosso futuro são imensuráveis, para já não falar que, de uma assentada, atira para o lixo quase 50 anos de exercício da Autonomia regional nesse domínio.
Em segundo lugar, esta proposta tem subjacente uma preocupante, desresponsabilizadora e ilusória conceção de Autonomia. Repare-se que, nessa proposta, nada se diz quanto à capacidade de fazer despesa ou de assumir encargos. Essa continua a ser uma competência regional. Porém, para pagar aquilo que decidimos num exercício de pretensa Autonomia, já pedimos ajuda ao Estado.
É o exemplo acabado da Autonomia da Desresponsabilização…
E assim chegamos ao terceiro motivo que me leva a considerar que essa proposta é negativa e muito perigosa: assim que o Estado assumir encargos com as decisões que a Região toma nos setores da Educação e Saúde, o mesmo Estado quererá ajuizar o mérito das decisões que os órgãos de governo próprio da Região tomem nessas matérias, se não mesmo, passar a ajuizar sobre todas aquelas decisões que envolvam despesa, mesmo que incidam sobre outros setores da governação. Este aspeto não tem a ver apenas com a questão de que, a partir daí, teremos uma Autonomia de fachada. Ele acaba por poder vir a influir e condicionar aspetos muito concretos da nossa vida coletiva, como as questões de acesso aos cuidados de Saúde e de acesso à Educação, bem como com aspetos da vida dos profissionais que estão ligados a estes setores, como por exemplo, os termos, eventualmente, mais favoráveis das respetivas carreiras, quando comparado com outras partes do território nacional. (con tinua)
A segunda proposta que considero ser negativa, é a que defende que se determine o montante do IVA que deve ser transferido para a Região aplicando a percentagem que representa a população dos Açores na totalidade da população do país ao montante total arrecadado a título de IVA na totalidade do País.
Atualmente, há mais uma operação que é feita para além das atrás referidas, e que é, no final, deduzir o montante correspondente à percentagem de redução fiscal decidida pela Região.
No fundo, aquilo em que a proposta consiste é de eliminar o último passo que atualmente se faz, e, assim, passaria a Região, independentemente da redução fiscal que decidisse, a receber, a título de receita fiscal de IVA, o montante que corresponde ao produto do montante arrecadado a título de IVA no todo nacional pela expressão percentual da população dos Açores face à população do País.
Ora, mais uma vez, esta proposta pode passar por esperteza à mesa do café, mas uma análise séria, cuidada e ponderada logo revela que ela, mesmo permitindo arrecadar, eventualmente, mais receita, acaba por constituir uma machadada na Autonomia regional e constitui, também aqui, um exemplo acabado da “Autonomia de Desresponsabilização”.
Em primeiro lugar, passaríamos a ter uma situação em que, sendo certo que o eventual impacto económico de uma decisão regional de ter IVA mais baixo se repercutiria na Região, a verdade é o que o impacto financeiro e orçamental dessa decisão de política fiscal, se repercutiria, apenas e tão só, sobre a República.
Para além disso, essa proposta mistura, com o aparente único objetivo de maximizar as verbas que recebe da República, dois conceitos que devem estar separados: o que constituem receitas fiscais e aquelas que podem ser consideradas receitas a título de solidariedade e de coesão nacionais.
Por último, esta proposta esquece ou esconde aquela que foi uma decisão, com especial relevância para este assunto, tomada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades.
A 6 de setembro de 2006, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias proferiu o acórdão no processo C-88/03. A matéria substantiva em causa era a redução das taxas dos impostos sobre o rendimento, decidida pela Região Autónoma dos Açores e o processo resultava do recurso de anulação, interposto por Portugal, contra a decisão da Comissão Europeia de qualificar essa redução de impostos como um auxílio de estado ilegal.
Nesse acórdão, o Tribunal, a propósito da questão da seletividade da medida, assume uma parte da argumentação expendida pelo Advogado-Geral, a qual, para além de um conjunto de outras matérias, contém considerações que julgo bastante importantes sobre o conceito de autonomia suficiente.
No fundo, a ideia é que, para que uma decisão destas reúna as condições para passar no crivo da União Europeia, a mesma implica que exista uma verdadeira e tripla autonomia: a constitucional/institucional, a procedimental e a financeira.
E se é certo que o acórdão não levanta objeções à existência das duas primeiras componentes, a questão colocou-se, coloca-se e, julgo eu, colocar-se-á, exatamente, nesta última componente que consiste na ideia de que as consequências financeiras e orçamentais das reduções fiscais devem ser suportadas pela própria Região, não podendo existir financiamento dos seus efeitos e consequências pelo Governo Central.
Resumindo, para além dos argumentos que expõem a fragilidade política dessa proposta, há ainda, e de forma decisiva, aquele que me parece ser um argumento legal e de entendimento europeu que vai contra essa possibilidade de, independentemente das reduções fiscais que a Região decida, receber sempre o mesmo da República.
5. Mas, então, em que ficamos?
Aqui chegados, os eventuais leitores que ainda resistam à leitura destas linhas, colocarão, legitimamente, duas questões.
A primeira é se, por tudo isto que tenho vindo a escrever, eu considero haver alguma coisa a alterar na atual Lei de Finanças Regionais. A segunda é se, face ao crescimento acentuado do desequilíbrio estrutural das finanças públicas regionais, o único caminho possível será um resgate da República.
A minha resposta à primeira questão é sim. À segunda questão, a minha resposta é não.
Para além de alguns aspetos técnicos nos quais a Lei de Finanças Regionais está desatualizada, ou nos quais há a necessidade de uniformizar conceitos, parece-me existirem, desde logo, três aspetos em que seria, eventualmente, útil ponderar alterações.
Em primeiro lugar, a ampliação dos poderes das regiões autónomas no sentido de, sem limites, percentuais, decidirem sobre o sistema fiscal nacional, bem como a possibilidade de definirem os escalões, no caso dos impostos sobre o rendimento, e mesmo o elenco dos bens que integram as diversas taxas do IVA. Isso implicaria, entre outros, a eliminação do limite de 30%, no que se refere à possibilidade de diminuição da taxa dos impostos diretos e indiretos, bem como a eliminação do limite de 10% quanto à possibilidade de adicionais à coleta dos impostos vigentes na Região.
No caso do IVA, isso significaria a possibilidade de determinar quais os bens estariam sujeitos à taxa reduzida, os sujeitos à taxa intermédia e os sujeitos à taxa normal.
Naturalmente que, em coerência com o que atrás expus, todas essas alterações alicerçam-se no pressuposto de que as consequências orçamentais dessas decisões seriam, única e exclusivamente, suportadas pelas regiões autónomas.
No entanto, e entre outras vantagens, essa alteração eliminaria a situação em que acabámos por cair de considerar que a redução fiscal deve ser de 30% porque esse é o limite máximo permitido. O critério de política fiscal regional deixaria de ser, como foi no passado recente, atingir o limite máximo legalmente permitido apenas porque sim, mas, ao invés, a justiça fiscal, a redistribuição, e as consequências que esse tipo de intervenção poderia ter sobre a economia regional e nos recursos da Região.
Acresce que a eliminação do referencial percentual em relação aos impostos nacionais, traria também a vantagem de não levar a que as regiões fossem afetadas por decisões que são tomadas por outros, como acontece agora que, sempre que a República mexe nos impostos, as finanças regionais são afetadas.
Um segundo domínio de alterações possíveis consiste na extensão e aprofundamento de aspetos como a relação financeira entre as autarquias locais e a Região, a participação desta nas receitas obtidas por empresas públicas ou concessionários privados de serviços públicos em território, terrestre, aéreo ou marítimo, da Região, ou circundante à Região, e a quantificação de benefícios intangíveis que a Região possibilita ao Estado.
Os últimos dois aspetos, sobretudo, dizem respeito à participação nos proveitos obtidos, para referir apenas três exemplos entre outros possíveis, pela NAV no âmbito da Centro de Controlo Oceânico de Santa Maria ou os benefícios que derivam para o País das decisões tomadas pela Região, por exemplo, na ampliação das Áreas Marinhas Protegidas, ou até, já num outro domínio, os benefícios recolhidos com a utilização norte-americana da Base das Lajes.
O que me parece verdadeiramente fundamental é que a lógica dessas alterações conducentes a um aumento de receitas da Região seja sempre uma de trade-off entre os Açores e o Estado e nunca uma de subsidiação pelo Estado de despesas decididas pelos órgãos de governo próprio.
A última alteração que julgo verdadeiramente essencial, refere-se à blindagem da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, seja por via do estabelecimento de uma reserva de iniciativa para a sua alteração a favor de uma ou das duas regiões autónomas, seja por via da exigência de uma votação por maioria de 2/3 na Assembleia da República para a sua alteração, mesmo que isso implique uma revisão constitucional.
Por fim, a questão do resgate financeiro da República.
Parece evidente que, a continuarem os Açores neste percurso de crescimento quase exponencial de défices, chegará a um ponto em que outro remédio não restará se não o pedido de resgate à República, ou, pior, a imposição por terceiros de medidas draconianas de reequilíbrio financeiro e orçamental.
Este é um aspeto que resulta, diretamente, da tal conceção segundo a qual a Autonomia gasta e o Estado há-de pagar. O problema, para mim, mais do que ser o Estado a pagar, é o de que sempre que isso acontece, há um potencial, se não mesmo, um efeito da nossa Autonomia ficar limitada, constrangida e condicionada.
O que parece necessário, pois, é a inversão dessa lógica, assumindo, inequivocamente, a necessidade imperiosa de maior atenção, rigor e cuidado quanto à componente da despesa e da assunção de encargos. É nesse domínio que os órgãos de governo próprio devem ter total autonomia e liberdade, e é esse o domínio que deve constituir o cerne da preocupação das entidades regionais.
Mas para que isso aconteça, para que essa autêntica revolução coperniciana possa operar, parece-me existirem alguns pressupostos cuja realização se afigura complexa, difícil e exigente.
O primeiro é a necessidade da Região se libertar das grilhetas do mimetismo face à República, as quais, como acontece na esmagadora maioria das vezes, resultam, sobretudo, de uma autolimitação diretamente ligada à inércia e ao comodismo regionais que levam a que se copiem, sem qualquer juízo crítico, soluções organizativas, estruturais ou de políticas setoriais adotadas a nível nacional.
É essencial também dizer que, casos há, em que essas grilhetas também resultam de limitações impostas pela República, o que, em alguns casos, nos obriga assumir os custos daquilo que não decidimos. Exemplos destas situações prendem-se com aspetos relativos à própria organização administrativa da Região, a questões de funcionalismo público ou organização de serviços regionais.
O segundo pressuposto, e talvez o mais difícil de alcançar, tem a ver com os consensos políticos e sociais imprescindíveis para que o sucesso de uma abordagem que privilegie menos o ganho político imediato e mais o sentido estratégico dessas decisões.
O processo não é simples e exige algo que, nos dias que correm, parece particularmente difícil de conseguir: uma cidadania informada, esclarecida e disponível para assumir a sua quota parte de responsabilidades por opções estratégicas de longo prazo, as quais, por isso mesmo, não produzem resultados em meses ou, sequer, em poucos anos, e, não menos importante, estruturas institucionais de governação, seja ela politica ou social, com a capacidade e com a competência necessárias para questionar, mobilizar, enquadrar e liderar essa reflexão e esse exercício.